Entrevistado: Raphael Campanholi – professor e nutricionista especializado em esporte de alto rendimento.
Pesquisas recentes sobre nutrição vêm desmistificando ou revertendo conceitos relativos ao consumo de proteína, principalmente por pessoas interessadas em ganhar massa muscular. É este assunto que o “Alimentos na palma da mão” aborda em um bate-papo do nutricionista Murilo Dáttilo com Raphael Campanholi, também nutricionista, especializado em esporte de alto rendimento.
Segundo ele, “normas” de consumo proteico diário não precisam ser tão rígidas – como uso de suplementos proteicos, por exemplo, após o exercício físico, prática consagrada nas academias. E mais: além de não existir superioridade dos suplementos proteicos sobre os alimentos proteicos, tanto proteína proveniente de fonte animal quanto a advinda de fonte vegetal têm a propriedade de conferir ganho muscular ao indivíduo, já que o organismo não diferencia a fonte dessa proteína.
Tais conclusões, de acordo com Campanholi, facilitam muito a vida do nutricionista e do interessado em ganhar massa muscular, já que se abre um leque de possibilidades de consumo proteico, sem que essa prática fique engessada. Ou seja, “democratiza-se” a forma de consumir proteína. A seguir, os principais trechos da entrevista.
MD – Muita especulação e conceitos relativos ao consumo de proteína relacionado ao ganho de massa muscular estiveram sob o olhar da ciência nas últimas duas décadas. Embora já fosse conhecido que uma pessoa em treinamento físico poderia se beneficiar caso tivesse um aporte proteico maior, pouco – ou quase nada – se sabia sobre fontes proteicas, se um suplemento seria melhor do que o alimento, qual o melhor momento de oferta, como isso deveria ser distribuído ao longo do dia, entre outras dúvidas. O que você, que atua na área de esporte de alto rendimento e com pessoas que fazem exercício de cunho recreativo, vem notando a respeito do tema consumo de proteína e suplementos proteicos?
RC – Esta dúvida é recorrente no meu consultório, porque é carregada de crenças, sobretudo por causa de especulações criadas há alguns anos, mas que hoje várias foram derrubadas pela ciência, embora muita gente ainda chegue ao consultório com determinadas “verdades”. O que se sabe é que o indivíduo que pratica exercício físico pode se beneficiar uma quantidade maior de proteína e, em um determinado momento, passou-se a se estudar fontes proteicas e melhores momentos de ingestão. Algumas impressões iniciais foram tiradas, mas, quando os estudos avançaram um pouco mais (partindo para estudos de longo prazo, como 8 a 12 semanas), verificou-se que o que se acreditava não se sustenta mais em relação a momento de ingestão e a fonte proteica. Mas, no consultório, ainda é comum as pessoas chegarem com algumas crenças, carregadas de bastante expectativa. Por exemplo, consumir whey protein (proteína de soro de leite, que é de rápida digestão), após o treino, acreditando que isso favorecerá o ganho de massa muscular, ou então consumir quantidades muito elevadas de proteína, acima da recomendação diária, acreditando que o efeito será maior. São algumas das crenças que temos hoje em dia, e bastante desafiadoras, porque a gente tem que trabalhar com ciência, ancorar em conhecimento científico, mas, ao mesmo tempo, ter jogo de cintura e apresentar a ciência para as pessoas que chegam com essas crenças.
MD – Então, hoje é possível afirmar, com certa segurança, que suplemento proteico não é mais vantajoso do que alimento proteico?
RC – Isso mesmo! As únicas vantagens pairam sobre a facilidade de consumo, sobretudo para pessoas que apresentam certas restrições de grupos alimentares (p. ex. vegetarianos). No entanto, àqueles que têm acesso a diferentes tipos de alimentos, especialmente os de origem animal, é muito fácil de o consumo proteico diário já ser maior do que as necessidades, e nosso corpo não consegue aproveitar proteína consumida além do que se precisa.
MD – O quanto essas conclusões podem facilitar o trabalho do nutricionista e o que você acha a respeito do termo “democratização da própria alimentação”, com foco na parte proteica? E o quanto isso pode ser difícil de as pessoas entenderem, ou seja, que o mais simples é o que vai proporcionar o máximo de resultados (no ganho de massa muscular)?
RC – De fato, essa simplicidade, para algumas pessoas, soa até como um dilema. Porque elas criam uma expectativa quando vão ao consultório. Recentemente, eu atendi uma pessoa que fazia musculação e, logo depois, consumia uma refeição proteica líquida (whey protein) e, meia hora depois, almoçava – um ritual bastante difundido entre os praticantes de musculação. Mas, no momento em que explico todo o contexto histórico das novas conclusões – e acho importante falar isso para a pessoa, porque elas ficam sabendo de onde surgiram determinadas crenças –, acredito que fica mais fácil derrubar as crenças e convencer a pessoa de que aquela prática não se sustenta. Pensando na democratização, eu acho o máximo ver pessoas adotando novas práticas, sejam pessoas onívoras (que comem de tudo), vegetarianas ou veganas. Por exemplo, aquela pessoa que defende o churrasco com unhas e dentes se sente até ofendida quando você fala que consumir proteína vegetal pode ser tão eficiente quanto a proteína animal para o ganho de massa muscular. Mas este fato não vai piorar os ganhos de quem come carne, e sim facilitar a vida de quem não come. É bom pra todo mundo. Ninguém perde nessa história. Assim, para mim, a democratização é excelente porque facilita a vida da pessoa e nós, como nutricionistas, defendemos o dever de facilitar a vida dela a partir do momento em que ela entra no consultório. Se ela sai com mais problema do que entrou, alguma coisa está errada.
MD – Ainda sobre a “democratização” do consumo de proteína, seja ela de fonte animal ou vegetal. Gostaria de saber se o corpo consegue identificar se o aminoácido de que ele tanto precisa, não só para a musculatura, mas também para outros órgãos do corpo, veio de fonte vegetal ou animal? Se ele veio de uma carne vermelha ou do feijão ou do whey protein?
RC – Não identifica. A leucina, por exemplo, não vem com seu “passaporte de origem”, assim como nenhum outro aminoácido. Passado o processo digestivo, cai na corrente sanguínea, e cada aminoácido é direcionado para a sua finalidade. Se os aminoácidos essenciais foram obtidos de proteína animal ou vegetal, não fará diferença para o organismo. É claro que existem peculiaridades, como o fato de proteínas animais tenderem a ter uma quantidade maior de aminoácidos essenciais do que proteínas de origem vegetal. Por isso já se sugeria aumento do consumo da proteína vegetal para suprir o nível de aminoácidos essenciais, equiparando-se os seus efeitos às taxas de síntese de proteínas de fonte animal. É uma orientação recomendada há bastante tempo e que hoje é sustentada por estudos crônicos, comprovando que indivíduos submetidos a exercício físico resistido e a uma dieta hiperproteica, seja consumindo dieta vegana ou onívora tradicional, têm ganhos de massa muscular e de força praticamente iguais.
MD – Ou seja, só boas notícias para o nutricionista que vai auxiliar uma pessoa com o planejamento alimentar. Porque se passa a ter diferentes possibilidades, e não uma apenas, e monótona, para se obter um resultado satisfatório. Embora eu ainda ache que levará um certo tempo para que esses conceitos fiquem mais presentes e sejam mais bem aceitos, já que se trata de um belo rompimento de paradigma.RC – Sim. E passa a ser importante entender a ordem de prioridade de cada questão. Se o consumo de proteína é mais simples do que eu pensava, então ótimo, eu posso direcionar minha atenção para outros aspectos. Recentemente, por exemplo, eu fui dar aula sobre recomendações de proteína e, depois de apresentar todo esse contexto de que estamos falando agora, de ingestão diária, momento de ingestão, quantidade por refeição e tudo o mais, uma aluna se voluntariou para que organizássemos a ingestão proteica dela ao longo do dia. E foi tão simples fazer isso que as pessoas que ainda não tinham se deparado com essas informações falaram: “Nossa, é tão mais simples do que eu pensava que chega a ser bobo, de tão fácil que é”. Principalmente para uma pessoa que pratica musculação, que é aquela que chega com maior expectativa no consultório sobre ajustes nutricionais. Assim, podemos focar em outras coisas mais importantes, e que nem estão diretamente ligadas à alimentação, como qualidade e constância do treino. Fatores que podem gerar adaptações mais significativas do que tentar olhar só para a parte proteica.